“Povo preto precisa de espaço para fazer e difundir sua arte”, diz cantora premiada

Ganhadora do Prêmio Açorianos 2020, artista gaúcha Glau Barros fala sobre carreira artística e racismo

Fabiana ReinholzBrasil de Fato | Porto Alegre (RS) | 12 de Dezembro de 2020 às 17:30

Artista se apresenta neste sábado (12), no projeto Ecarta Musical, a partir das 18h – Luís Ferreira/divulgação

Com 30 anos de carreira na música e 20 anos nas artes cênicas, a gaúcha Glau Barros, que vem de uma família que curte samba e é do carnaval, ganhou neste ano o Prêmio Açorianos nas categorias de Disco do Ano, com o Brasil Quilombo, e Artista Revelação. 

“É um momento muito importante não só da minha carreira, como também da carreira das pessoas que estão envolvidas nesse trabalho. Esse prêmio não é só meu, apesar do disco estar no meu nome, é um prêmio de todos nós, todos são premiados com esse Açorianos de 2020”, destaca Glau, que nos últimos anos tem se voltando cada vez mais ao samba.   

Cantora, atriz, figurinista e mãe, Glau Barros é considerada uma das revelações do samba no Rio Grande do Sul. E neste sábado (12), apresentará seu show Brasil Quilombo, no Ecarta Musical, projeto permanente da Fundação Ecarta, com transmissão online, às 18h. A cantora apresenta o álbum que conquistou no Prêmio Açorianos 2020 as categorias de Disco do Ano e Revelação, além das indicações de Melhor Intérprete de MPB e Melhor Espetáculo.

No show, ela estará acompanhada do violonista Eduardo Moreira e de Alexsandra Amaral na percussão, interpretando canções de compositores gaúchos e releituras de músicas consagradas do gênero. A seleção passa por Lupicínio Rodrigues, 26, de Edison Guerreiro, e A caixa e o tamborim, de Pâmela Amaro. Zé Caradípia, em parceria com Luis Mauro Vianna, assina a faixa-título, e o repertório inclui ainda as canções Vem devagar, de Zilah Machado, e Fuxico, de Mestre Paraquedas, entre outras.

Brasil de Fato conversou com Glau sobre sua carreira e também sobre racismo e o momento em que o país vem vivendo. “Se as pessoas que têm privilégios não mudarem a sua forma de pensar, de agir perante essas violências, perante o racismo, perante todos esses preconceitos, as coisas não vão mudar, vamos ficar nós negras e negros falando entre nós e a estrutura continuando como está”, afirma.

Veja abaixo a entrevista completa. 

Brasil de Fato RS –  Começando, gostaria que tu nos contasse um pouco sobre ti, a tua trajetória.

Glau Barros – Sou cantora, atriz, figurinista, sou mãe também. Também sou envolvida com a questão do carnaval e faço parte da diretoria, no setor cultural, do clube social negro de Gravataí, Seis de Maio. Eu já venho trabalhando com arte profissionalmente desde 1990 como cantora, e como atriz desde 2001. E entre essas duas profissões já tenho 30 anos de carreira.

E desde então venho trabalhando sempre, e mais nos últimos anos voltado para a cultura negra, difundindo as nossas raízes, as nossas narrativas. Também estou cursando, comecei nesse semestre licenciatura em música. 


“É preciso ser visto, é preciso ser lembrado, é preciso ter condições de fazer a sua arte para que o público consiga consumir essa arte” / Luís Ferreira/Divulgação

“E o quilombo dança como escravo livre, num imenso matagal, o Carnaval”. São versos da canção que dá nome ao teu disco, Brasil Quilombo. Gostaria que tu nos falasse sobre teu disco . Que Brasil Quilombo é esse? O que ele traz?

O Brasil Quilombo, esse trabalho que é meu primeiro registro em CD, é exatamente o que diz a letra, um coletivo negro, um aquilombamento, onde a sua raiz é a nossa cultura, o nosso fazer negro, o nosso romper com as estruturas. Com essa estrutura racista que tem no nosso país. 

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É um conjunto de pessoas trabalhando para que as nossas narrativas sejam ouvidas, sejam vistas, para que nossa cultura seja exaltada. Então traz um pouco de tudo, é o samba, é o carnaval, as nossas lutas. Traz as mulheres compositoras negras que estão aí há muito tempo tentando romper esse espaço que é tão masculino. Então tem ali as nossas mulheres negras. Tem as nossas canções calcadas nas religiões de matriz africana. Tem as pessoas não negras também que comungam com essa ascensão da nossa cultura, nossa ancestralidade. Esse é o Brasil Quilombo. É nosso aquilombamento enquanto artista preto e preta. 

É meu primeiro CD depois de 30 anos de carreira, então isso já diz tudo. Em um país em que a gente tem poucas oportunidades, só agora eu consegui fazer esse trabalho. Então trago aí toda a minha experiência enquanto artista. A falta de espaço muitas vezes nos faz sair um pouco da rota e ter que sair para buscar outras alternativas de sobrevivência, então esse sonho vai ficando cada vez mais sendo protelado. Então o momento que eu pude fazer esse CD foi agora, mas também não foi sozinha, foi a muitas mãos. Ele é um trabalho independente, fruto de um financiamento coletivo. E também muitos artistas participaram, muitos profissionais talentosíssimos, entre músicos, produtores, artistas enfim de todas áreas. Durante esse tempo coloquei todos os esforços nesse trabalho. 

Através desse financiamento consegui realizar o trabalho, fora que a gente vem fazendo shows, apresentações e guardando ali uma parte para poder resultar em um material bem completo. Mesmo hoje, em época das mídias digitais, das plataformas de música, eu achei importante ter esse registro físico, de ter o CD, de ser bem construído exatamente por ser um longo tempo de carreira. Toda essa trajetória merecia algo bem acabado e sonhado. Então esse é o Brasil Quilombo. 

Tu ganhastes o Prêmio Açorianos 2020 nas categorias de Disco do Ano e Revelação, além das indicações de Melhor Intérprete de MPB e Melhor Espetáculo. Como foi para ti essa premiação?

Foi muito significativo, com as indicações já me considerei vencedora. Como atriz eu já havia sido indicada anos atrás, com o grupo Caixa Preta, e agora fui indicada pela música, pelo Brasil Quilombo e fiquei extremamente feliz. É um misto de emoções, a gente faz uma retrospectiva de toda a trajetória. E nós (eu, Celso, meu produtor e toda a equipe) trabalhamos muito para ter um trabalho bacana na praça; Marco Farias, o arranjador, o produtor musical Gelson Oliveira, diretor musical. Então eu também estou cercada de profissionais muito talentosos, competentes, que têm uma história na música aqui no Rio Grande do Sul e fora daqui, muito consolidada. 

Ficamos muito felizes com as indicações e o ganho nas categorias. Fomos indicados a quatro categorias: espetáculo, disco na categoria MPB, artista revelação e intérprete. E recebi de artista revelação e DVD que foi uma premiação elencada pelo grupo de jurados. 

Foi um ano que tínhamos programado uma série de apresentações e projetos para difundir o trabalho, com a pandemia a gente não pode fazer. Em algum momento fiz live de um ano de comemoração, e em todas as outras lives que fiz fui divulgando o trabalho. Mas essa premiação tem um alcance muito grande, um prêmio bastante importante no nosso estado e só o fato de ser indicada já teve um alcance muito grande, já teve uma grande divulgação, em um ano que a gente gostaria de estar viajando com o Brasil Quilombo. 

Então realmente é um momento muito importante, não só da minha carreira, como também da carreira das pessoas que estão envolvidas nesse trabalho. Eu fico muito agradecida de poder estar trabalhando com essas pessoas. Esse prêmio não é só meu, apesar do disco estar no meu nome, é um prêmio de todos nós, todos são premiados com esse Açorianos de 2020.   

Como é fazer samba no RS?

O samba aqui no RS é muito forte, temos uma tradição de samba muito grande que não fica somente nas escolas de samba, nos sambas de quadra, enfim. Essas pessoas que contribuem com o samba para o carnaval, como compositores, compositoras, instrumentistas, estão o ano todo produzindo tocando nos bares, nos espaços culturais, compondo, fazendo parte de grupos, coletivos, associações ligadas ao samba. Mas o espaço para o sambista ainda é muito pequeno, acaba que ficamos ainda em alguns guetos de samba, algumas casas. E desde 2008/2009 que eu venho trabalhando mais diretamente com o samba, anteriormente era mais MPB, e depois foquei mais no samba. Eu sempre procurei levar o samba para outros espaços, como teatros, outras casas que não tinham a tradição de levar sambistas. 

E nesse meu levar para outros espaços também levar outras pessoas que não estavam acostumadas a estar nesses espaços, a frequentar esses espaços. Eu acho que de lá para cá o público de samba tem aumentado bastante, tem ultrapassado fronteiras, e acho isso muito positivo. E mais, eu consigo estar com as pessoas que eu admiro do samba, e isso é muito importante. Eles estão aí hoje vivendo do samba, compondo, tocando, e a gente precisa de um espaço maior na mídia tradicional também. 

Hoje a democratização das mídias sociais possibilita que a gente se encontra, se reconheça, consuma um o som do outro, que essa geração que está vindo reverencie os que abriram os caminhos. Mas eu acho que ainda falta na mídia tradicional, nos projetos tradicionais, trazer esse pessoal mais para a vitrine, que a gente possa conhecer mais pessoas. Aqui em Porto Alegre e região Metropolitana isso é feito, mas a gente ainda desconhece muito do que é feito no interior, e tem meios de comunicação no interior para difundir esses sambistas que estão espalhados no nosso estado e que são extremamente talentosos. 

Tive oportunidade de viajar com alguns espetáculos que eu faço para o interior e lá eu conheço muita gente bacana. Então essa ponte é preciso ser feita e acho que as mídias sociais, as redes sociais auxiliam nisso, mas a mídia tradicional tem que dar atenção maior para essa tradição do samba que é tão grande e que não é só do carnaval. 

Em 2016, tu  participou do programa Criança Esperança com o vídeo “Ninguém Nasce Racista – Continue criança”. No vídeo as crianças têm um roteiro onde não conseguem dizer as frases de preconceito e racismo. Como foi essa experiência? 

Esse foi um trabalho bastante importante na minha carreira, foi um vídeo que viralizou, tem milhões de acesso. E em determinadas épocas ele volta a ser compartilhado e as pessoas me marcam. Foi um trabalho muito importante nessa luta contra o racismo, contra o preconceito. E foi um trabalho bastante difícil de fazer uma vez que tinha que contracenar com as crianças e elas se emocionavam, é um tema pesado. Foi gravado aqui em Porto Alegre, algumas crianças que participaram eram do Rio de Janeiro e algumas aqui do interior do estado. 

Ele cumpre a função a que se propõe, que é tocar as pessoas de quanto o racismo é nocivo e quanto faz as pessoas sofrerem. As pessoas se identificam, ficam emocionadas porque mexe profundamente com o sentimento. E são crianças relatando situações de racismo e elas estão consciente de quanto isso é violento na vida das pessoas. 

É um trabalho que choca bastante mas que mostra a que veio, que tem um resultado positivo. 

Estamos vivendo um período conturbado e sensível no mundo, mas especialmente no país. Este ano, juntamente com a pandemia, vimos um levante da luta antirracista no Brasil e no mundo. Como tu vês essa a questão do racismo no país. E como combatê-lo? 

O racismo sempre esteve aí, sempre sofremos na pele, o racismo diário, o racismo estrutural. E hoje ele está sendo filmado, mostrado na televisão, está na mídia, nas redes sociais. E esse período político que a gente vive também colaborou para que isso viesse a tona de uma forma muito mais agressiva e violenta, esses governos fascistas que a gente está vendo um crescente, mas que agora nas últimas eleições estamos vendo uma resposta contrária a isso, com uma eleição que traz uma diversidade maior de pessoas nos espaços, nas instâncias de poder. Pessoas pretas, pessoas trans, LGBTQI+, enfim. A gente viu uma resposta nas urnas que é contrária a essa onda fascista. 

Essa nossa luta é diária e de muito tempo. E todo esse período que estamos vivendo fez com que isso ficasse mais forte. As pessoas agora estão compreendendo que não é um problema só das pessoas negras, e sim das pessoas não negras. A gente vem lutando contra isso, com estas violências há muito tempo, há muito sofremos na pele. Se as pessoas que têm privilégios não mudarem a sua forma de pensar, de agir perante essas violências, perante o racismo, perante todos esses preconceitos, as coisas não vão mudar, vamos ficar nós negras e negros falando entre nós e a estrutura continuando como está. É preciso um movimento de todos, e em alguma medida a pandemia trouxe essa consciência para algumas pessoas, não para todas. 

A gente tem muita luta pela frente, mas é uma luta que a gente precisa dar a mão para todo mundo para que isso acabe. Acabar eu acho quem difícil que acabe, não sei se nessa geração a gente vai conseguir, mas as gerações que estão vindo já percebem isso e já respondem de forma diferente, isso é muito positivo. Mas isso também é um trabalho de luta que vem de muitos anos, de grupos organizados, as pessoas vem se organizando ao longo do tempo para que essas respostas estejam acontecendo agora e que vai no futuro surtir muito mais efeito. 

Como ele se manifesta no meio musical?

É mais ou menos como eu vinha falando antes. O samba, por exemplo, as manifestações culturais negras, elas acontecem ainda muito no informal e muito nos nossos espaços, nos nossos quilombos, de nós para nós. Tem alcance de alguns artistas que difundem e a mídia tradicional divulga. Mas o grande grupo, a grande massa de artistas, tanto no meio musical, quanto do meio das artes cênicas,em todas as esferas, necessita de um espaço maior para que seja consumido e para que seja remunerado por isso, para que consiga viver disso. 

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Eu acho que as formas de fazer cultura com grana através de políticas públicas, de editais que financiam esses projetos, isso tudo diminuiu muito com esses governos que não têm essa preocupação com as políticas públicas, com a difusão da cultura. Essa falta de espaço também é uma forma de racismo e de preconceito contra essas manifestações culturais que vêm do povo preto, indígena, que vêm da diversidade. 

No momento que se tenha espaço para todos, que se tenha políticas públicas e projetos, que o estado se comprometa a fazer essa difusão, a democratizar os espaços, democratizar o acesso aos bens culturais para que essas manifestações se sobressaiam e consigam ser feitas na sua plenitude, quando isso acontecer, estamos começando a mudar essa lógica e fazer com que o Brasil consiga enxergar esses artistas e consiga consumir esses artistas. 

É preciso ser visto, é preciso ser lembrado, é preciso ter condições de fazer a sua arte para que o público consiga consumir essa arte. Ainda temos esse gargalo muito forte na cultura, não só música mas como todas as outras manifestações culturais.     

O show da Glau deste sábado pode ser acompanhado nos seguintes canais 

https://www.youtube.com/channel/UChw0bfi8tYPEGrGN2-r49ughttps://www.instagram.com/fundacaoecarta/https://www.facebook.com/ecartamusical


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira

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