Os olhares atentos e curiosos das crianças se confundem com o medo dos caretas. Nos olhos das pessoas adultas a gente enxerga de longe o brilho e encanto com o que se apresenta à sua frente. Idosas/os se esquecem das dores na coluna, joelhos e outras queixas e caem no samba. Jovens registram tudo e soltam risadas ou aproveitam pra paquerar mais por longe da área central. Tem ainda a força dos batedores e das batedoras dos tamboretes e a sonoridade contagiante dos versos que nem sempre se entende o que querem dizer.
Vejo tudo isso e muito mais nessa tradição secular que hoje lideranças políticas do Salitre ajudam a manter viva. Sim, não há nenhum tipo de investimento público em uma expressão tão grandiosa da cultura popular deste distrito. Os sambas acontecem em janeiro a partir da organização das comunidades ou grupos políticos que acreditam na força da cultura ancestral.
O último ano em que a manifestação aconteceu foi 2020, nos dois últimos anos o isolamento social necessário para controlar a pandemia da Covid-19 foi respeitado. Este ano, centenas de pessoas saíram de suas casas para a comunidade de Baraúna, no dia 07 de janeiro, e para a comunidade de Alfavaca, no último sábado, dia 28.
A primeira iniciativa partiu de Gilberto Braga Filho, neto de um dos amantes do samba no médio Salitre, Augusto Braga, de 82 anos. Quando passou das 20h, motos e carros começaram a iluminar a estrada de Baraúna, disputando com a claridade da lua cheia, e a roda foi crescendo no terreiro pra receber o Boi, os caretas e as tradicionais figuras do reisado. Foi o primeiro sábado do mês, uma noite animada, onde logo no primeiro momento a criançada mostrou que tem samba no pé e homens e mulheres sambaram até 4h da madrugada.
Já no último sábado de janeiro, a folia se deu em Alfavaca, uma iniciativa do Coletivo Carrapicho Virtual, que já vinha realizando o evento desde 2015 e este ano somou-se ao Coletivo Enxame, com apoio do Boteco da Janica, que tem sido um ponto de encontro de gerações de todo o Vale. Foi também um momento de homenagem ao Senhor Gilberto Ferreira (Seu Júlio) , batedor de samba que, inclusive, sempre nos emprestou seus tamboretes e faleceu nesta última semana.
Esses dois momentos foram de reafirmação. Para os/as organizadores/as, a constatação de que a cada ano o esforço deve ser maior para melhorar o evento. Para o público, a alegria de vivenciar algo que herdamos de quem chegou muito antes da gente. “Eu vim da ilha pra cá, o samba bom ficou lá”, diz um trecho de um samba que certamente era cantado por pessoas que não viviam mais em seus lugares de origem, mas que carregaram consigo sua tradição, resistindo e recriando a manifestação em outros locais. A gente se depara olhando a roda de samba acontecendo, o vai e vem das mãos nos tamboretes, as pessoas suadas dançando, batendo palmas e outras cantando, as crianças ali inebriadas com tudo aquilo e na mente vem muita coisa. Vem até nome de projeto!
E tem sido assim. A tradição vinha sendo esquecida no Vale e a retomada da realização dos sambas partiu do Projeto “Viva a Roda: nossa cultura em Movimento”, executado pela União das Associações do Vale do Salitre – UAVS, em 2013, com recursos da Fundação Nacional de Artes/Ministério da Cultura. O projeto estimulou a juventude a seguir realizando o evento, mesmo sem orçamento específico. O financiamento tem sido feito pelos/as próprios/as realizadores/as, que se juntam para arcar com custos e com o trabalho. E não é pouco trabalho para realizar um evento deste, nem pouco custo. Porém, pra gente é investimento, pois cumpre um papel importante no fortalecimento da identidade do povo salitreiro ao manter viva a tradição; proporciona lazer sadio para todas as gerações; movimenta a economia local.
Mas, os governos dormem. Enquanto a gente prestigia o evento e corre pra lá e pra cá pra dar conta dos detalhes dos bastidores, também consegue fechar parcerias para o ano seguinte, dialogando com quem também ama tudo isso e acredita na cultura como algo também necessário para consolidar o Bem Viver no Semiárido. Enquanto a gente discute nos nossos grupos de WhatsApp um dia depois como superar as falhas desta edição e fazer um evento melhor no próximo ano, os governos dormem.
No momento do ápice do evento em Alfavaca, lá pelas 22h, cerca de 400 pessoas no terreiro e alguém me perguntou: “como é que a prefeita não aparece num negócio desse?” Respondi que não se dão conta da grandiosidade disso, nem esta gestão, nem as anteriores. Este ano foi sancionado o Dia Municipal do Samba de Véio, 06 de janeiro. Vamos querer que isso se faça valer na prática, com financiamento público para a manifestação que acontece no Rodeadouro e demais comunidades. A lei foi criada pelo poder público, mas só existe devido à resistência de um povo que mantém a tradição viva.
O Rodeadouro também celebrou nossa cultura neste janeiro sambando de porta em porta, mobilizando moradores/as num processo lindo de renovação de lideranças no grupo, chegando até mesmo a deixar de cantar algumas músicas do samba consideradas machistas e que podem ser entendidas como apologia à violência contra a mulher, como o verso que diz “é lua nova, é lua cheia, mulher casada que namora merece pêa”. As meninas não deixam mais cantar essa música!
Para o Carrapicho Virtual, para o Coletivo Enxame, UAVS, para o grupo Samba de Véio do Rodeadouro isso é muito mais que um samba, é um povo se movimentando, literalmente e rebolativamente – como sempre diz DJ Werson – em busca de muito mais que lazer, mas também de lazer. É uma possibilidade de fortalecer a economia criativa, uma novidade que traz no horizonte a valorização financeira dos processos que envolvem a criatividade com relação a ideias, serviços, produtos. Gerar renda com o que tem valor simbólico. E por que não? É um aspecto que pode ser associado ao turismo de base comunitária, um modelo onde todo mundo sai ganhando, turistas se hospedam nas comunidades, vivenciam experiências e não apenas conhecem lugares. Em 2020 já realizamos um projeto piloto no Salitre e deu certo! Pra gente, é também uma forma de fazer com que a tradição não morra, à medida que as crianças vão se encontrando no pisoteio do chão batido ou no colorido das figuras e vão se tornar as feitoras de samba daqui a uns anos.
Bem, nesse rodopiar de mais um janeiro no Salitre, a gente cantou reis – porque não é pecado – a gente girou como o boi bumbá. Somos borboletas lindas no meio da roda, somos abelhas fazendo muito mel… a gente voa, pousa, desperta muitas atenções, aprende, ensina, provoca, quebra tabus, inova, se reinventa, porque a cultura é viva, não é estática, se movimenta junto com as mudanças de época e as épocas de mudanças.
A gente sabe fazer porque aprendeu fazendo. A gente vai seguir e vai contagiar mais e mais gente a cada dia, no Salitre e em outros cantos. Como escreveu Rosa Luxemburgo, “quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”. Como toda nossa ancestralidade negra que sentiu as perversas correntes e resistiu, sambou, fez do samba a graça da senzala e depois a festa do quilombo, a gente segue sambando e quem não quer entender e/ou valorizar, dê licença que estamos chegando (e ficando!) com a força da nossa cultura e da nossa juventude raiz.
Por Érica Daiane – comunicadora, educadora, ativista do Vale do Salitre, idealizadora do Carrapicho Virtual e uma das fundadoras do Coletivo Enxame. Atualmente está presidenta da UAVS.
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