A cada ano, a noite do dia 24 de abril, na comunidade de Santa Terezinha, no Vale do Salitre, em Juazeiro, está ficando mais movimentada. Nesta data se celebra o Dia de São Vicente, padroeiro dos penitentes, e um dos guias de cordões apaixonado pela tradição e empenhado em não deixá-la morrer, José Lair, adotou essa data para realizar todo ano um econtro de cordões.
Cordão é o nome dado a um grupo de penitentes organizados a partir de uma comunidade ou de um guia que reúne alguns homens que precisam pagar suas promessas ou simplesmente se desafiam a ser penitentes. Trata-se de uma tradição centenária, que vem passando por muitas mudanças, porque a cultura é algo que se movimenta mesmo, nunca será igual para sempre.
Os penitentes têm a quaresma como época principal para visitar cemitérios, igrejas ou rezar e pedir esmolas (doações de bolos, farinha, sabão, velas, etc) nas residências. Porém, em outros momentos do ano podem ir ao cemitério rezar por alguma alma necessitada ou participar de cafés organizados por alguma família. Nos últimos anos, temos visto apresentações em eventos culturais ou encontros como o que foi realizado neste dia 24, momentos que visam fortalecer essa manifestação popular que reúne devoção, fé e história.
Desde a minha infância esses homens de saia e rostos cobertos estão presentes, a maioria com as vestes brancas, mas alguns com manchas de sangue ou o tecido todo tingido pelo sangue derramado do próprio corpo. Sim, alguns cortam as costas enquanto rezam, usam para isso um instrumento chamado disciplina, que é um tipo de lâmina amarrada a um cordão em tamanho suficiente para açoitar a área central das costas.
Esse ritual é conhecido por autoflagelo, mas isso só passei a ouvir quando via matérias na televisão, porque no Salitre cresci falando apenas “penitentes que se cortam” ou ouvia de algumas pessoas o termo “disciplinadores”. A motivação para isso não sabemos ao certo, existe algumas versões que quem quiser saber pode procurar conversar com alguns guias de penitentes.
Ao ouvir as pessoas mais velhas contarem como a penitência acontecia há cerca de 50 anos, percebemos o quanto se transformou. Contam-nos que ninguém conseguia descobrir quem eram aqueles homens por baixo daqueles panos, não podiam mostrar o rosto, nem contar que faziam parte de algum grupo, apenas algumas pessoas da família ficavam sabendo. Hoje em dia, conseguimos fotografar alguns deles facilmente, embora há ainda alguns que prefiram ficar no anonimato.
Os cordões também eram maiores, ainda cheguei a ver essa fartura de penitentes em algumas quaresmas, mas hoje ficamos tristes ao ver um grupo pequeno, ou não ver, como foi o caso desta última semana santa que não tivemos penitentes rezando e pedindo esmolas no terreiro da nossa casa na comunidade de Tapera. O bom é que em outras comunidades que não tinha hoje tem. E assim a tradição se mantém.
Já senti medo das rezas, já tremi ao chegar perto de um penitente, hoje meu filho de 04 anos passeia tranquilamente entre eles, cutuca, tira foto junto, se brincar daqui uns anos vai até querer ser um também… e terá meu apoio. Já houve inclusive cordões apenas com crianças, hoje não tem, mas alguns penitentes mirins se destacam entre os adultos e nos enchem de esperança.
No último dia 24 nos arrepiamos mais uma vez com o encontro de cinco cordões. É um momento muito forte. As crianças têm ali a oportunidade de conhecer a tradição, as pessoas se deslocam de comunidades distantes para prestigiar, doam alimentos para um lanche coletivo no final e voltam para suas casas felizes em ver de perto a tradição viva.
Por Érica Daiane – jornalista, integrante do Coletivo Enxame
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