Juana Portugal (INI/Fiocruz)*
No dia 5 de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi notificada pelo Reino Unido do aumento no número de casos de hepatite aguda grave em crianças menores de 10 anos que, até aquele momento, não apresentavam nenhum problema de saúde. Os relatos davam conta de sintomas gastrointestinais prévios como: dor abdominal, diarreia e vômito, icterícia e uma elevação acentuada das enzimas hepáticas. A maioria dos casos não apresentou febre.
No Brasil, segundo o informe da sala de situação da Secretaria de Vigilância em Saúde emitido no dia 24 de maio, o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (Cievs) recebeu 76 notificações distribuídas em 15 estados, dos quais 12 já foram descartados.
O que se sabe até agora sobre a doença? Como podemos prevenir a infecção? Quando um caso pode ser considerado suspeito? Hugo Perazzo, médico hepatologista e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), aborda estas e outras questões na entrevista a seguir.
INI/Fiocruz: Para contextualizar, o que é a hepatite?
Hugo Perazzo: Hepatite é a definição de uma inflamação do fígado. A hepatite é caracterizada pela inflamação das células do fígado e pode ter várias causas. Temos hepatites virais, provocadas por vírus hepatotróficos, ou seja, que tem predileção por agredir o fígado. Os vírus responsáveis pelas hepatites virais são: A, B, C, D – conhecido como delta -, e o E. A infecção pelas hepatites A e E acontecem por via fecal-oral, ou seja, através de água ou alimento contaminados. Ambos vírus provocam inflamação aguda, mas temporária, no fígado. O próprio organismo resolve a inflamação em 99% sem necessidade de suporte e aproximadamente 1% dos casos evoluem para insuficiência hepática ou falência do fígado. Os vírus B, C e D apresentam casos agudos e podem evoluir para a cronicidade, ou seja, a pessoa ter que conviver com esse vírus em seu organismo e isso gerar problemas como a cirrose hepática, por exemplo.
Vale destacar que muitos acreditam que a cirrose hepática está relacionada apenas com o consumo do álcool e isso é uma meia verdade. A cirrose hepática nada mais é do que uma condição de muita agressão no fígado por um consumo de álcool de muitos anos ou por causa de uma hepatite B, C ou D crônica. A cirrose é uma condição que demora de 15 a 20 anos para se instalar.
A hepatite aguda é uma forte inflamação das células hepáticas e pode ser provocada pelos vírus A, B, C, D e E, mas também pode ser provocada pela ingestão abusiva de álcool, por uma reação autoimune do organismo ou pelo uso intensivo de algum medicamento. Então a hepatite aguda tem várias causas e se caracteriza, geralmente, por sintomas inespecíficos como náusea, vomito e cansaço, o que pode ser semelhante ao quadro de uma gripe. A pessoa pode evoluir para a icterícia, que é aquela cor amarela nos olhos e na pele. Esse sintoma indica que pode ser hepatite e o caso deve ser investigado.
INI/Fiocruz: Como é diagnosticada a hepatite aguda?
Hugo Perazzo: A hepatite aguda se caracteriza no exame de sangue pelo aumento das enzimas do fígado e geralmente é identificada, geralmente, quando há a presença da icterícia. A gente consegue dosar no exame de sangue, basicamente, duas enzimas hepáticas que são as mais importantes: aspartato aminotransferase (AST ou TGO) e alanina aminotransferase (ALT ou TGP). Nos casos de hepatite aguda esse número está acima de 500 e o valor normal é por volta de 30. Então, ao suspeitar de hepatite aguda, é feito o exame de sangue e caso as dosagens de transaminase e bilirrubinas estejam elevadas, o que leva à icterícia, a suspeita de hepatite aguda nesse indivíduo é confirmada.
INI/Fiocruz: Existe algum vírus que seja mais comum no Brasil?
Hugo Perazzo: Na infância temos uma prevalência de 90% da hepatite A por contato com água e/ou alimento contaminado. A hepatite B tem uma prevalência de aproximadamente 1% da população, que é intermediária se pensarmos em termos mundiais. A hepatite C tem uma prevalência de 0,5 a 0,7%, que é considerada até baixa, mas no Brasil temos uma população muito grande. Por isso estimamos que em torno de 600 mil brasileiros vivem com hepatite C, no momento. É um número bastante grande.
As causas mais comuns de hepatite aguda são os vírus A e B e a ingestão de drogas e medicamentos que podem levar à intoxicação do fígado. Neste último caso o paracetamol, antibióticos, antiinflamatórios e anticonvulsivantes são as substâncias mais comumente relacionadas com a hepatite aguda no Brasil.
INI/Fiocruz: Que informações temos sobre os recentes casos de hepatite aguda envolvendo crianças e adolescentes?
Hugo Perazzo: Nos primeiros meses do ano, foram relatados por agências de saúde internacionais é um surto de hepatites de origem desconhecida em crianças e adolescentes. Os primeiros casos foram relatados na Europa, posteriormente nos Estados Unidos e, recentemente, tivemos casos suspeitos no Brasil. Até 24 de maio, ou seja, uma semana atrás existia um relato de 429 casos em 22 países europeus, especialmente no Reino Unido foram registrados 131 casos. No Brasil, o Ministério da Saúde relatou, até ontem, 76 casos em 15 estados.
A grande maioria ocorreu em crianças menores de cinco anos. O que chama a atenção é que em torno de 15% precisou de uma internação em unidade de tratamento intensivo, que é bastante alto, e até 10% precisou de um transplante hepático. É uma condição grave. É como se tivesse uma falência do fígado na sua função e quando isso acontece precisa ser substituído e por isso é necessário o transplante. Quando uma hepatite aguda tem uma evolução ruim esse deve ser o tratamento. Então, obviamente, esse não é um tratamento para todas as pessoas. Devemos evitar o pânico. É necessário enfatizar que não necessariamente uma hepatite vai evoluir para transplante. Devemos evitar o pânico. Mas o que chamou a atenção é que até 10% dos casos europeus precisaram de um transplante de fígado.
INI/Fiocruz: A hepatite é comum em crianças?
Hugo Perazzo: A inflamação do fígado é uma condição que não é comum observar em crianças. O que é mais comum é o contato durante a infância com o vírus da hepatite A por contato com alimento ou água contaminada, mas a gente não via casos de hepatite em criança com frequência nos últimos anos. O que chamou a atenção das autoridades internacionais foram os casos se repetindo de hepatites agudas em crianças. A investigação ainda não conseguiu determinar qual é o agente etiológico porque as causas principais foram todas negativas. As crianças que desenvolveram a inflamação no fígado e foram reportadas internacionalmente eles tiveram toda a investigação de causas prováveis para hepatite aguda negativas. Isso chama a atenção e torna necessária uma investigação sobre o agente etiológico e medidas de controle, entre outros pontos estratégicos.
INI/Fiocruz: Como é determinado um caso suspeito?
Hugo Perazzo: Podemos considerar um caso suspeito quando envolve uma criança ou adolescente menor de 17 anos com quadro de hepatite aguda caracterizado por aumento das enzimas do fígado acima de 500 UI/L, que não tenham uma causa definida, ou seja, que tenham as sorologias para as hepatites A, B, C, D e E negativas, que tenham outras causas potenciais de hepatites – como a presença de dengue, zika e chikungunya – negativas, sem outras causa genética ou cálculo na via biliar que explicasse essa hepatite. Então esse é perfil que caracteriza casos suspeitos.
Nos casos internacionais chama à atenção relatos de quadros de virose, que precederam a hepatite propriamente dita, com sintomas gastrointestinais como diarreia, dor abdominal e vômito. A maioria não teve febre. Essas crianças não tinham nenhum outro histórico que pudesse explicar a evolução para uma hepatite aguda.
INI/Fiocruz: Nesse momento de incerteza o que os pais podem fazer para tentar prevenir essa infecção?
Hugo Perazzo: É importante enfatizar que não temos um agente etiológico definido. Nos casos internacionais, aproximadamente 70% apresentavam infecção por adenovírus, que é muito comum na infância, ou seja, não é uma novidade, e 10% tinham infecção pelo Sars-CoV-2, ou coronavírus. Não se sabe ainda se existe uma relação causal entre a presença desses vírus e a hepatite de origem desconhecida. Por isso, atualmente, a prevenção possível é manter a higiene, especialmente nos alimentos e na lavagem de mãos, além de manter cuidados para evitar contato com vírus respiratórios usando máscaras e evitando aglomerações. Além disso, manter a caderneta de vacinação em dia também é muito importante. Essas são as linhas gerais da prevenção que podemos ter no momento até a identificação do agente etiológico dessa hepatite aguda.
Podemos afirmar que a doença não parece ter nenhuma relação com viagens internacionais.
INI/Fiocruz: Algum alerta para os profissionais de saúde?
Hugo Perazzo: Caso uma criança ou adolescente apresente aumento agudo de transaminases, ou a presença de icterícia, deve aventar-se a hipótese de ser a hepatite de origem desconhecida e informar o Ministério da Saúde através do link para notificação de casos, que tem um formulário específico, um email e um telefone 0800 para obter orientações que ajudem a confirmar ou descartar a hepatite aguda. A partir desse momento realizar as sorologias das hepatites A, B, C, D e E, dengue, zika, chikungunya e febre amarela, swab nasal para o Sars-CoV-2 – que é a Covid-19 -, swab retal e coleta de fezes para detectar outros vírus, adenovírus, novovírus e enterovírus, e aí, mediante esses resultados, caso todos sejam negativos, é um caso suspeito dessa hepatite.
INI/Fiocruz: Quais são as hipóteses até o momento?
Hugo Perazzo: Estamos ainda trabalhando dados epidemiológicos e comparando com bases de anos anteriores. Pode ser que os casos de hepatite estivessem acontecendo em crianças em anos anteriores, mas não estavam sendo identificados. Agora, com maior conhecimento, chegamos nesse alerta.
Fatores que podem gerar confusão: a hepatite aguda pode ter origem em medicamentos utilizados para tratar infecções por vírus respiratórios; pode ser um novo vírus que está surgindo – e aqui vale lembrar que o vírus da Hepatite C foi descoberto em 1992 e antes disso, em 1985, mais ou menos, começaram a ser notificados casos de uma hepatite identificada na época como “não A – não B” posteriormente reclassificados como hepatite C-; pode ter relação com vírus respiratórios, como o adenovírus, principalmente porque ficamos muito reclusos na pandemia e o isolamento social e uso de máscara resultaram na baixa exposição das crianças aos vírus respiratórios da infância o que levou, agora nesse período, ao desenvolvimento de hepatites.
Mas, até agora, não sabemos qual é o agente etiológico. Por isso a notificação é muito importante para o Ministério da Saúde, porque leva a uma investigação e é essa pesquisa que vai levar ao esclarecimento da causa dessas hepatites agudas.
INI/Fiocruz: Qual é a mensagem que você gostaria de enfatizar?
Hugo Perazzo: Não deve haver pânico. Nem todo caso de gastrenterite ou virose vai evoluir para hepatite. Estamos no inverno e é uma época em que temos grande circulação de vírus respiratórios em creches e colégios. No caso de uma virose consulte seu pediatra.
Não há necessidade de um rastreamento universal de transaminases em crianças. Não há necessidade, do ponto de vista epidemiológico, que toda criança com virose faça exame de sangue. Os pais devem estar atentos a sintomas digestivos muito intensos ou prolongados e, principalmente, ao aparecimento de olhos e pele amarelos, que é a icterícia. Isso deve chamar a atenção para a procura de um atendimento médico mais urgente.
Fonte: Agência Fiocruz de notícias/Publicado em 26/05/2022, com informações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde. Reprodução: TNR, em 06/06/2022
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