Assistimos de forma recorrente a ataques desferidos pelo presidente da República, alguns de seus ministros e os seus filhos, contra a China, o mais recente foi uma reiteração da insinuação mentirosa de que o vírus foi produzido em laboratório na China e que faria parte de uma “guerra bacteriológica”, ataque gratuito que tem como consequência a possibilidade de novos atrasos na entrega de insumos para a produção de vacinas no Brasil, conforme alertado pelo Instituto Butantan em São Paulo. Além desse prejuízo, mais um, de Bolsonaro contra a Saúde dos brasileiros, esses ataques histriônicos e sem qualquer contato com a realidade colocam em risco a saúde econômica e financeira do Brasil, que tem na China seu principal mercado e parceiro comercial. Tamanha preocupação paranoica com o parceiro oriental, que já desponta para principal Economia do planeta, pode gerar um interesse maior sobre o processo histórico, político e social daquele país, não para ser copiado pelo Brasil, mas para servir de ponto de referência para uma reflexão e aproveitamento do que for positivo para a nossa realidade local.
A experiência socialista na China, iniciada em 1949, sob a liderança do Partido Comunista chinês, criado há exatos 100 anos em 1921, expressa um avanço na superação do Capitalismo, e abriu possibilidades para a construção de alternativas que pudessem a um só tempo combinar desenvolvimento das forças produtivas, garantia de inclusão social e experiências socializantes na Economia. Essa “iluminação” chinesa, uma experiência socialista inovadora e bem sucedida, se deu com a conjunção entre uma leitura não ortodoxa do marxismo e a compreensão da realidade local e da História do país onde se empreende a construção do Socialismo, para que se tenha uma estratégia própria.
Certamente a compreensão marxista dos limites do Capitalismo continua atual e válida. Esse sistema sócio econômico propiciou um grande desenvolvimento das forças produtivas, mas ao mesmo tempo significou um processo de exploração intensiva de muitos trabalhadores, a exclusão de outros do processo produtivo, o aumento das desigualdades sociais, a manutenção ou crescimento da fome e da miséria no planeta. O Capitalismo se caracterizou por crises cíclicas que destruíam parte das forças produtivas para abrir espaço para um novo ciclo de crescimento. O desemprego de grandes massas de trabalhadores e a situação de alta vulnerabilidade social para a maior parte da população sempre foram marcas desse sistema, que experimentou um momento de Social Democracia apenas na Europa e Estados Unidos nas décadas de 1950, 1960 e 1970, mas que a partir de 1980 foi desconstruído pelo neoliberalismo e a retirada de direitos sociais.
Também acompanhou o sistema capitalista o Imperialismo dos países capitalistas centrais, que promoveu a colonização de amplas regiões do globo, destruindo civilizações, enfraquecendo Estados, subordinando populações à escravidão ou servidão extrema, explorando as riquezas naturais desses países colonizados e mantendo-os apenas como consumidores de seus produtos industrializados ao mesmo tempo que se especializavam em fornecer matérias primas. A África e a Ásia nos séculos XIX e primeira metade do século XX sofreram essa invasão militar e econômica das potências europeias e dos Estados Unidos, convertendo-se em apêndices para o crescimento econômico das potências, com forte destruição de sua infraestrutura social e política. Nessa fase temos o neocolonialismo, herdeiro do colonialismo europeu que desde o século XVI dominava, destruía e explorava o continente americano e submetia a África ao tráfico de escravos.
A China foi vítima desse processo com o início na Guerra do Ópio (1839 a 1860), quando as potências estrangeiras, especialmente a Inglaterra, destruíram a capacidade econômica e a integridade nacional, com várias ondas de saques, conquistas e exploração econômica. Apenas com a Revolução Comunista de 1949 esse ciclo de destruição do país e da nação chinesas foi interrompido e se iniciou a reconstrução do país em novas bases.
Completando esse quadro do sistema capitalista, a super exploração da Natureza, de seus recursos naturais e a poluição desenfreada do meio ambiente levou a Humanidade a entrar numa fase de risco de extinção por diversos motivos: efeito estufa com a aquecimento global, escassez de água, destruição de habitats de populações e de seus meios de subsistência, esgotamento de recursos naturais para a sobrevivência da população, pesca predatória e destruição dos ambientes marinhos, dentre outros.
As contradições do Capitalismo, dentro dos países centrais com a acirrada luta de classes e crises econômicas cíclicas, ao lado do imperialismo que subordinava outros países, abriram espaço para a mobilização social, a conquista de avanços sociais em alguns países centrais e as guerras de libertação e revolução em países submetidos ao Imperialismo. A concepção marxista de que o avanço das forças produtivas geraria as contradições sociais que permitiriam a superação do Capitalismo foi aprimorada quando se identificou o potencial revolucionário nos “elos mais fracos da corrente do Capitalismo”, justamente nos países ainda não desenvolvidos sob a égide do Capitalismo. Apesar dos fortes movimentos operários na Europa e Estados Unidos, foi em países onde o Capitalismo não era desenvolvido, como a Rússia, ou aqueles com forte subordinação às forças imperialistas, como China, Vietnam e vários países africanos e árabes, onde houve fortes revoluções sociais e nacionais com sucesso, que geraram sistemas distintos e alternativos à exploração capitalista.
Uma análise histórica mais ampla consegue identificar nesse processo alguns elementos que servirão para analisar a contribuição chinesa para a construção do Socialismo numa nação forte economicamente, com presença geopolítica fundamental e que já é o principal centro econômico do mundo. E esses elementos iluminam um caminho de cooperação com outros países visando a sobrevivência e o avanço da civilização humana.
Um primeiro elemento é que a ascensão das classes sociais do operariado e dos trabalhadores em geral na Europa e nos Estados Unidos entre 1945 e 1991 se deveu à pressão dos regimes socialistas na União Soviética, no leste europeu e na China, ao lado da luta dos trabalhadores dos países capitalistas. Foi a existência de um modelo alternativo nesses países de inspiração socialista, que conseguia grandes avanços econômicos ao lado da inclusão de todos na Economia, da igualdade social e da socialização da Educação e da Saúde, que levou o Capitalismo a fazer concessões e a diminuir a taxa de exploração de suas classes trabalhadores com o objetivo de diminuir a pressão no cenário interno desses países. Apesar disso, a exploração neocolonial na América Latina e na África continuaram plenamente, inclusive com intervenções diretas ou apoio a golpes que derrubaram governos populares.
Com a extinção da União Soviética e de uma determinada experiência socialista no bloco dos países no Leste Europeu, deu-se início ao neoliberalismo, que aumentou as desigualdades sociais nesses países e nos países que orbitavam os Estados Unidos, inclusive da América Latina, com a progressiva exclusão social de amplos setores sociais por motivos econômicos e tecnológicos, a destruição dos direitos sociais e do “Estado do Bem Estar Social” e o crescimento da violência, dos ataques aos estrangeiros e da xenofobia. Cresceram as guerras das potências capitalistas em todo o globo, com os Estados Unidos sempre à frente, contra países mais fracos, com o objetivo de pilhar economicamente e criar condições de expansão do Capital estadunidense e seus satélites.
Um elemento da visão chinesa, a partir de 1949, foi a afirmação de que cada país deveria encontrar na sua História, sua configuração social, sua cultura e sua geografia as condições e a estratégia ideais para o desenvolvimento do Socialismo. Quando o Partido Comunista Chinês apresenta um caminho próprio, singular e distinto do caminho soviético, abre-se ao campo da esquerda mundial a visão de que deve haver esse respeito às características próprias de cada país, que não deve copiar modelos e deve ser criativo e audacioso para construir as bases de um novo sistema.
As experiências de governos populares e de esquerda na América latina, com Brasil, Bolívia, Equador, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile no início do século XXI encontraram caminhos também próprios. Nessa conjuntura a convivência com a experiência chinesa foi essencial. As relações entre os países se estreitaram, abrindo caminho para diferentes cooperações visando a transformação da realidade social.
Ao lado disso, a posição da China de buscar uma ordem mundial, com Paz, com o objetivo sempre de estabelecer ralações pacíficas com todos os países e propugnar pela cooperação entre as nações é fundamental para a configuração de uma nova ordem mundial. A própria criação do bloco dos BRICS (que envolve Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) vai no sentido de superar uma ordem unipolar e unilateral que vigorou depois da queda do muro de Berlim em 1989 e da dissolução da União Soviética em 1991, quando os Estados Unidos se autoproclamaram o poder único e dominante no planeta. Os BRICS significaram o estabelecimento de relações de cooperação econômica entre esses países e com outros na Ásia, América latina e África. Cooperação que levou a grande desenvolvimento da produção econômica, do comércio e da geração de empregos.
Entretanto, essa ordem que se desenvolveu rapidamente no início do século XXI foi sentida como uma ameaça pelos Estados Unidos, que ajudaram ou promoveram golpes institucionais e governos de direita no Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, além de apoiar governos neoliberais como na Argentina e Uruguai e de promover a tentativa de derrubada do governo nacional da Venezuela.
Atualmente, alguns países já retornaram a um governo mais popular como Argentina, México e Bolívia, o Chile avança em direção a uma constituinte que pode produzir uma ordem social bem mais avançada. No Brasil, o governo de extrema direita apoiado pelos Estados Unidos vem rapidamente perdendo força, apesar de sua “estratégia do caos” para tentar se manter no poder.
O diálogo sobre a experiência chinesa se impõe, sem preconceitos ou posturas histéricas, mas com pesquisa e cuidado. Com certeza essa experiência tem muito a nos ensinar, e continuaremos a analisar ela em diferentes campos, e não somente o econômico. No âmbito da Educação, por exemplo, será realizado o primeiro encontro sobre essa política pública no Brasil e na China, a partir de 10 de maio, pelo site.
Fonte: Brasil de Fato – 06 de Maio de 2021 às 16:54
Edição: Elen Carvalho
Reprodução: Tá Na Roda – 11 de maio de 2021 às 11:22
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